quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Logro

Você que não faz questão dessas aventuras, desproveito.
Claro fica, então, que não faço falta
Nem perfuro a ausência
De um espaço calado, sofrido, vazio.
Sou nada, pó, nem lembrança. 
Sem mim, tudo em seu lugar
O gosto você logo esquece, é breve, leve
Parece fácil desfazer esse laço
Bem dado, para mim.
Para você é só alvoroço
De qualquer pele sorrindo de novo.
Morno, largo, perecível.
É nada mais que nada feito.
Mas, francamente, não chega a ser lástima
Essa sua falta de anseio
Nego que sei que é só fantasia
Disfarço e desfaço tudo o que você falou
Falácia, finjo verdades

Para dizer que é amor. 

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Love in the afternoon

Fotografia by Gabrielle Torres. 
Não era muito mais que saudade e nostalgia ao sentir o perfume das roupas entendidas no varal e ouvir os passos do carteiro trazendo o seu postal para mim. Os meus pés descalços, os cabelos envolvidos num grande girassol. E eu a sorrir imaginando a próxima vez que conversaríamos novamente. Você viria empolgado ao me contar dos frios ares do Atlântico Norte, do pontual chá dos ingleses e daquela bela arquitetura que esconde tanta magia. Eu, ávida, ouviria tudo imaginando cada detalhe. Esperaria, cheia de ternura, um longo abraço que terminaria no tão esperado livro que você prometeu-me. 
Mas, caindo em realidade, beijo o papel desenhado com sua grafia. Ainda posso imaginar cada gesto seu ao escrever-me. Provavelmente você o fez com o charuto entre os lábios, tragando saudade e engolindo a fumaça, entre um e outro ajuste no seu monóculo que insiste em cair. Penso em como as coisas estão acontecendo para você. Aqui, meu bem, o crepúsculo continua lindo, acompanhado do leve perfume dos lírios amarelos do jardim da casa vizinha. Ainda ouço naquela vitrola nossas canções preferidas. Minhas alvoradas têm sido de lembranças embrulhadas como os chocolates com os quais você costumava presentear-me. Sento-me no alpendre, sob a sombra da cerejeira que você deixou, ainda pequena, para que eu cuidasse. Precisa ver como está grande a nossa árvore. Com ela e os contos de Christie, a saudade do seu amor torna-se menos doída. Lembro-me de ti a todo momento. Mas, sobretudo, lembro-me de ti nas noites, nestas noites de primavera. É o período mais difícil de enfrentar sem ti, querido. Os vinhos já não são tão bons companheiros como antigamente. Lembro-me de quando você chegava acompanhado de um demi-sec e castanhas frescas para desbravarmos as madrugadas do mês de maio.  As escopas não são mais as mesmas sem ti, até nossos compadres reclamam da falta que você faz. Não visto mais aquele meu vestido de flores desde que você viajou. Na penteadeira, está aquele seu chapéu marrom que você não levou. Esse eu tenho usado frequentemente. Sabe? Ainda guarda o seu perfume. Aliás, como tudo nesta casa. Como eu, inclusive.
Peço que não te demores, querido. Ainda temos muito que viver juntos, que conversar. Temos que preparar o jantar. Dançar e amar. Não te demores, querido. Até Presley não tem o mesmo efeito sem tua presença aqui. 

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Melô do meio

Sobre retalhos e rasgos mal curados não sei mais do que o comum de se saber.
Conheço os aborrecimentos normais de uma vida medianamente vivida, de um ritmo quase regularmente sentido. 
Conheço os medos relativamente paralisantes que insistem em deixar sempre em alerta a autopunição.
Sinto o gosto meio amargo de uma vida quase bem vivida, de um sorriso quase bem sorrido, de uma felicidade quase descoberta.
Um vale inconscientemente poderoso deixa tudo assim meio cinza, meio sem graça. Meio vivo.  É um gosto aos poucos, pelas metades, pelas beiras, sem ápice ou final. É tudo meio, sem conclusão, sem inteiros, sem permissão.
Um começo meio torto, sempre se arrastando para não ser mais que o meio. Nem chega e nem se vai. Um talvez pela metade, um meio sim e um meio não. Tão parado ou monótono quanto uma existência sem sal, perdida entre os quatro cantos da vida.
Agregados e desagregados, aos passos pequenos e lentos que a vida dá longe dos sorrisos e dos agrados, dos abraços, dos pedidos e das despedidas. Nada se pede, nada se clama, nada se quer. Não há nada a mais que pouco. Um pouco pela metade.

É tudo meio pesar, que tento imaginar o que seria uma vida inteira, sem pedaços, sem partes ou lugares, sem retalhos ou trechos, sem menos que o meio. Sem meia estrada. Assim, meio parada. Em vão. Paro no primeiro sinal, na contramão. Desço, esqueço-me de tudo que ainda poderia viver. Concentro-me nessa meia vida que, cansada de ser tão metade, naufraga em poucas palavras, poucas lágrimas e poucas bocas. Assim, como um meio sem fim.  

Whatever

                Eu descobri a roupa feita de belas palavras e vozes com a qual você se vestiu quando veio falar comigo, mas isso já não faz a menor diferença.
                Eu vi em seus olhos a liberdade que você diz sentir e ela me deu asas. Além de ter me dado uma vontade imensa de voar para perto de você e experimentar de todos os seus abraços e jeitos, de todos os seus desenhos e desejos. Mas isso também já não faz a menor diferença.
                Eu ouvi a sua bela sinfonia e ela foi capaz de me fazer sentir melhor. É quase tão boa quanto as minhas mil fantasias a respeito de qualquer coisa capaz de fazer esta vida melhor. Isso faz alguma diferença agora?
                Eu senti o gosto doce do seu sim, as memórias do seu perfume, eu vi em você as marcas que eu queria conhecer, acompanhei de perto algumas horas da sua vida, escutei o seu ritmo desritmado do meu, num belo encaixe de voz e violão.
                Eu quis continuar a andar descalça por ai e sentir a natureza mais próxima sob as copas das árvores, na esperança de que o vento levasse de mim o seu retrato tão bem documentado na minha cabeça, o que não faz a menor diferença agora.
                Eu pedi para não perdermos tempo, o tempo que não se recupera, mas que cura. Pedi para controlarmos o relógio e usarmos bem os minutos que tínhamos juntos.  Eu quis colecionar aquelas belas lembranças em uma aposta falida de quem tem a melhor memória. Mas isso faz alguma diferença?
                Eu desejei um pouco mais, um segredo, um segundo, um toque. Eu desejei aquele sorriso e aqueles desequilíbrios em série nos quais nos entortamos. Eu quis mais uma dose, mais um comentário e mais uma vez.
E agora, meu bem, eu te pergunto: isso faz alguma diferença?


Whatever. 

A importância de sentir-se nada

Aura que encobre o medo
Com a luz que vem da escuro
O pouco pode nascer do nada.
Cabeça que deita no ombro
Olhos que pedem carícia
Desejos cobertos de omissão
Música boa que toca ao longe
O chiado do rádio
A vontade, a agitação, o susto com a morte
Tão presente em todos os lugares
Transitoriedade, fragilidade, torpeza. Esquecimento.
O brilho molhado que vai acabando os poucos
O contato espontâneo, imediato. O frio de dentro. O temor,
Às vezes sentir-se quebrado
Deixar os espaços vazios
De onde nascem as ervas daninhas
E as flores fáceis
Entender para não sufocar
Cuidar para não desfazer
Abrir-se para que o tempo devasse
Um dia haverão respostas.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Primeiro

Pri.
Prim.
Primeiro.
Primeiro minuto, primeiro dia, primeiro mês, primeiro ano.
Primeiro século, primeiro milênio.
Primeiro.
Prim.     
Pri.
Primeiro lugar, primeiro olhar, primeiro beijo, primeiro amor.
Primeiro toque, primeiro perdão, primeiro choro.
Primeiro.
Prim.
Pri.
Primeiro suspiro, primeiro raciocínio, primeiro soluço, primeiro passo.
Primeiro caso, primeiro laço.
Primeiro.
Prim.
Pri.
Primeiro inverno, primeiro suicídio, primeiro assassino. Primeiro desígnio.
Primeiro.
Prim.
Princípio, meio e Fim.

Brincadeira

Se a gente for brincar de depois, me acorde antes do sol nascer. 
Se a gente for brincar de depois, cuide de mim e me dê o que comer. 
Se a gente for brincar de depois, pegue nosso filho nos braços e o faça dormir.
Se a gente for brincar de depois, faça um pé de meia para comprarmos uma televisão.
 Se a gente for brincar de depois, pague o plano de saúde em dia.
Mas se a gente for brincar de agora, me tome nos braços, me beije e não me pergunte o que quero. 
Se a gente for brincar de agora, me imponha a felicidade com a certeza de que a única coisa que a gente possui é o brincar de agora, é o brincar com o agora. 

Excruciante

Os gritos abafados daquela criança revelavam uma vontade enorme de não sentir aquela dor. Abraçava-se de forma estranha, como se quisesse desaparecer.  Suposto fato atroz dominava a atmosfera da sua vida. O que teria realmente acontecido ela não sabia, mas para causar tamanha dor bastava a dúvida. Não ouviria mais aquelas vozes? Não abraçaria mais aquelas pessoas? Ela preferia morrer a sentir a ausência. Era como se destruísse um pedaço do coração a cada nascer do dia. A lembrança não lhe abandonava. Para viver daquele jeito, a cada segundo sentindo o gosto amargo da morte, preferia partir de uma vez, sentir toda aquela dor pela última vez e definitivamente.
Tomando coragem, olhava para os braços e para a faca que se encontrava ao lado da cama. Via aquela macabra imagem infinitas vezes, revivia aquele momento terrível mais e mais uma vez. Não estava mais aguentando. Respirou fundo. Quis gritar e nunca ter existido. Pediu perdão a Deus por sua covardia e fraqueza. Ela não superaria aquela hipótese. Se contorcendo e gemendo baixo, as lágrimas já transbordando, olhou uma última vez para aquele instrumento cortante. Pegou-o com muita força, apertou-o contra o peito. Disse os doces nomes das pessoas que mais amava e sorriu. Serena, mais leve e viva começou a perfurar o pulso direito.  O sangue vermelho escuro começou a escorrer e contrastar com a camiseta branca.
Por incrível que pudesse parecer, a dor física era reconfortante perto da dor causada pelo possível recente. Para onde iria ela não sabia, mas não tinha medo, não se importava. Queria apenas esquecer por um segundo, deixar de respirar, deixar de sentir aquela dor.
Em seu último suspiro, reviveu em um segundo o que levou alguns anos para acontecer. E lembrou-se da feliz vida que teve.
Então partiu, doce, serena, como sempre foi. Como uma manhã de Natal.

Realidade ilusória

Não sei para quem nós apresentamos nosso espetáculo, cenas improváveis, improvisadas.
Fomos nós os nossos próprios espectadores? Provavelmente.
Você ali, fingindo que me convencia e eu convencida e fingida.
Fingi que acreditei e que você precisava de mim. 
Protagonista e antagonista, nos demos as mãos e empurramos com a barriga.
Verdade? Bobagem. 
Me arrependo de não ter vendido ingressos e colocado nossa peça em cartaz.
Lágrimas de frascos, palavras pensadas.
Você me disse o que eu queria ouvir e eu, cheia de satisfação insatisfeita, topei o pacto. 
Procurei interpretar o meu papel com veemência, mas tive que abrir os olhos, afinal.
Me despedi da ilusão que eu ajudei a criar, desci do palco, abandonei as máscaras e o figurino.
Esqueci o texto, cansei das palavras ensaiadas.
Decidi viver minha vida com os pés na realidade. 
Abri os olhos e só agora posso ver que, por causa do orgulho, quase morri 
No espaço entre a loucura e a realidade. 

Meu nome não é Johnny

Meu nome não é Johnny. Por mais que eu queira, meu nome não é Johnny.
Meu nome não é Alice. Por mais que minha memória me traia, o espelho sempre irá me fazer lembrar... lembrar que meu nome não é Joana.
Lá estarão as marcas, as marcas que Lúcia não tem, pois meu nome não é Lúcia. As cicatrizes no meu rosto. A marca de cada caminho, de cada destino. Minhas lembranças.
Meu nome não é Antônio. Por mais que eu queira, meu nome não é Antônio.
Minhas escolhas, minhas decisões. Decisões que Denise não tomou, pois meu nome não é Denise.
Em cada consequência, em cada vulto do passado. Júlia não está lá, pois meu nome não é Júlia.
Não há como fugir. As evidências não me deixam.
Por mais que eu queira, meu nome não é Johnny.
É possível se trair consigo mesma?

Gaiola

Da janela de vidros fechados, um sol embaçado
Suspiros, gemidos e gritos;
A vida rotineira, o sentimento naufragado.

Já não se sente mais a euforia, alegria.
O sorriso há muito se foi
Atos foram perdidos, ninguém se atreveria...

Realidade esquecida, um outro mundo sobressai
Esquece-se da própria vida, cria, inventa e não vive
Refúgio tranquilizante que, como nunca, atrai

Estudos, pesquisas complexas, anos guardados
Empoeirados, mofados, escondem o perfume da vida,
Quando toda a verdade rica está em gestos, versos delicados

No perfume de uma flor, no formato da lua,
No caminho já traçado de uma gota de orvalho acariciando uma folha
Ai está a felicidade. Limpa. Sem segredos ou mistérios, nua e crua.

Felicidade que muitas vezes se perde nos labirintos do talvez 
Mas que só pode ser achada no caminho do coração.

Apneia

O relógio, sempre impiedoso, me olha como se me repreendesse. 
Tudo à minha volta é frio, as pessoas parecem não entender o que eu digo.
Escuto vozes que não são daqui, sonho com lugares inexistentes.
Não há pra onde fugir e, mesmo se houvesse, nada seria diferente.
Tudo está fora do lugar. Pessoas, gestos, vozes.
Parada, espero meu peito queimar em sentimentos desejando que o mundo queime junto, mas nada acontece.
Tento estabelecer uma ligação forte comigo mesma, mas é quase impossível.
Minha mente está desconectada do meu corpo e nada posso fazer até que o tempo passe.
Sinto tanto! Eu não queria o mundo desse jeito. 
O meu real desejo é continuar naquele pacto infame, mas não posso.
É apenas uma questão de autoproteção. 
Sinto falta de respirar, de mente e corpo juntos. Sinto, sinto.
E é uma pena que você não saiba disso. 

Os doces ventos frios

São esses ventos frios em tempos de verão que passam e desorganizam meus pensamentos. Levanta-os e os fazem levitar numa suave dança sem destino. São eles, os ventos, que me fazem não saber o quê dizer e qual deve ser o pensamento de determinada situação. E eu não sei como evitar, não sei como parar. 
Há horas em que tudo que se deve fazer é esquecer. Esquecer de todos esses pensamentos que os ventos puseram em grande confusão.
Esse verão que chega pedindo licença a adoráveis temperaturas baixas. Chega devagar e trazendo uma vontade de... O que é mesmo que devo dizer? Ah! Os doces ventos frios me confundiram de novo.
Não sei o que fazer, qual caminho seguir. Não é medo de errar, é medo de magoar. Isso não. Isso os doces ventos frios não são capazes de fazer passar. Nem o verão. Bem, talvez o verão. Com esse ar de renovação, um sol que, como nunca, se faz presente. Isso sim, não confunde os pensamentos.

Então talvez eu deva esperar os ventos frios passarem. O verão se acomodar. E, ai sim, meus pensamentos têm alguma chance de pararem de dançar e voltarem para o devido lugar.

Eu

E tu que bates a minha porta, o que queres?
Não posso dizer-te palavras torpes
Recitar versos insanos
Fazer juras de sofrimento ou compaixão
Não quero para ti, quero a ti
Não percebe e nem te falarei
Recolha seus trapos
Seus lamentos e suas preocupações
E ponha-te daqui para longe
Fora do perímetro notável

Reveja tua rebeldia
Tão cheia de culpa
Pesar de si mesmo
Peso de si mesmo
Pesa vagar por entre os vagos
Silhuetas disformes
Assombrações
Distorções
Emoções

Real energia dispersada
Abstrato universo paralelo
Faça de conta que há fusão
Eleve o grau de sua tortura
E torne-a mais sacra que seu belo suor

Ainda que sublime profusão de zelo
Renego e desprezo todo o seu cuidar de desfazer
Por esses caminhos tortuosos de fúria desvairada
E pelos ardis que lhe queimam a boca e a alma
Vejo sanar toda aquela quietude e falta de graça

Não entendo a dança dos corpos sem vida, mas danço o tango dos descontentes
E mesmo que a real condição de busca seja vergonhosamente inexata
Os achados encaixados e sobrepostos são genuínos
Parecem caixas vazias e aves num convés
Trespassados de vida
Cheios de nada.

Estrito

Várias coisas foram prometidas a mim
Por mim
E agora não posso mais me privar.
Prometi vontade, coragem, força de expressão
Jurei lealdade, verdade e realidade
E agora cometo perjúrio
Contra mim.

Fiz pontes com falsas cordas
Usei muros de vento para me resguardar
Cavei buracos em que eu mesma me afundei
Provoquei explosões em minha cabeça
E agora o cogumelo cinza não se acaba.

Construí ladeiras, elevações
Observei por cima das torres
Mandei drenar os lagos
Extingui toda a alegria
Reverenciei a miséria do espírito

Fiz do amargo pouco doce
E de sal me cerquei
Em noites sem vagalumes
Frio senti

Deixei a casa sem proteção
Sem as portas e sem as cortinas
Quebrei as camas
Ateei fogo nos portões
Fiquei sentada do lado de fora olhando
Esperando o nada me preencher

Penso em coisas disformes
Conturbações, depressões
Parece só o caos na rotina
Um pouco de omissão nos gestos
Pouca paz e outro rumo
Pouco conteúdo e vá-se a métrica
Muito distúrbio e pouca estética
Livre mundo e presa eu.

Exodus

Linda noite; amanheça
Tarde clara; escureça
Versos ternos; se desfaçam
Velas lúgubres; que se apaguem
Jovem corpo; envelheça
Vitalidade; desfaleça
A coragem; se reduz
Toda glória; que se mostre
Tua vitória; meu encanto
Adversidade; não se alongue
Sua idade; não me importa
Meu futuro; seu sorriso
Longo rio; transponha
Minha soma; subtraia
Meu amor; elevação
Ponte até você; não obstrua
Que seja constante; eternamente
Faça o que quiser
Qualquer coisa por você.

Animus laedendi

Eu não quero ser
Mais uma vítima urbana, insana, enlouquecida e cheia de arrogância
Eu não quero ser
Mais um refém da sua ignorância, discórdia, loucura e confusão
Eu não quero ser
Mais um corpo mutilado na esquina, mais uma linha interrompida que jaz no chão sem vida
Eu não quero ser
Mais um delito na lista da justiça.

Tudo o que eu queria mudar
É o que eu não sou  e o que eu não posso ser
Tudo o que eu queria saber
É como estancar essa fome de poder
Dê-me seu coração
E eu te digo a mais linda canção
Dê-me sua compreensão
E eu te ensinarei a viver mais um dia

Eu não quero ser
Mais uma empresa falida que implora o seu centavo:
Suado, roubado, cobiçado.
Eu não quero ser
Mais uma criança nua na estrada, que se exibe, que não se ama
Não se sabe se ainda quer viver
Eu não quero ser
Mais um pássaro torto trancado na droga da gaiola, a jaula inexistente,
tão presente, tão insuficiente
Mas eu preciso dela ainda
Para sobreviver, para conseguir sair, voltar, viver, sem ver
O que se passa
E o que está acontecendo de verdade
O que vem debeixo disso tudo que chamam de realidade

Mas você não crê
Porque foi violentado pelo seu pai
Sua irmã se prostituiu
E sua mãe está tentando curar mais uma farpa no coração

Mas você não vê
Porque queimaram suas pupilas com as cenas do teatro estúpido do errado.
Você não vê

E você queria entender
Mas não consegue porque inclodiram seu último neurônio com as substâncias túgidas do horror profano,
das lágrimas caídas na escuridão
daquilo tudo que é clandestino e nem se sabe mais setem explicação
Eu não quero ver.

Elegia

O sorriso luminoso esconde
Mas você queima

E no seu cárcere mental,
Você
Se enrola e cresce
Desmaia e acorda
Luta e não vence.

Não consigo mais ver você sendo,
Tentando não ser.
Rasgando-se inteiro
Sangrando em silêncio

Você que berra
Mas não sabe falar
Que chora
Sussurra e implora
Ao tempo que transborda sensações
Intimida reações
E não sabe mais de nada

Você que chama e não escuta
Perde e não sente
Comete e não perdoa.

Eu quis que você se despedaçasse
Todas as vezes que você pensou e não disse
Quando quis e não tentou
Quando viu e fechou os olhos
Quando doeu e não chorou
Quando viveu e não sentiu.

Digo isso para você que sempre quis demais,
Mas sempre a mesma coisa
Digo isso para você, amigo
Que precisa sentir
Muito mais que tormento.

Canto da noite astral

Estou a tua espera
Aguardo-te com promessas
Os teus olhos são teus reis
Governam-te até a culpa

Estou na tua casa
Preparando teu jantar
Vestindo-me de nua
Definhando na tua ausência
Espalhando-me em teus detalhes
Afogando-me em teus lençóis

Pois tu és
Meu vício sem fim
Meu mar de agulhas
O barulho do trovão

És a minha rua
Meu encalço e minha fuga
Meu espelho e minhas mãos
Minha mágoa e minha profusão

Estás em mim
Como o brilho está na lua
Como o sangue está nos corpos
Como a madeira no papel

És pra mim
A minha única segurança
A porta que não se fecha
O pingo que nunca cai
O farol na escuridão
A seiva que me alimenta
A minha consciência
O ponto de sanidade
Minha ignorância, meu pecado
Minha indolência e minha punição

E tu não sabes
Mas adoro-te como um deus
Refaço cada palavra tua
Como se fossem perpétuos manás
Estás em evidência
Vejo-te, e apenas ti
resplandece sobre mim

Não preciso mais verbalizar o que quero
Apenas deixo rastros fluorescentes para você seguir com a sua imprecisão.

Queima-me com sua luz
Devora-me com sua escuridão.

Spin

Saia de mim
Coisa impotente, corrupta e negligente
Afastem-se
Medo e vergonha e revolta
Vão.
Eu não quero mais nada disso aqui.

Quero um corpo puro
Só o mundo a corrompê-lo
Só a matéria a perfurá-lo
Mas nada mais de feridas internas.

Há muita coisa que precisa se ver fora
Mas não vê por onde sair
Há cacos demais no chão.
Meus pés estão cortados
Minhas vísceras estão palpitando
Sim, agora sou livre.

Todo mundo tem grandes problemas
Que não cabem em seus pequenos mundos
Não há alma livre sem perdão
Não há verdade sem solidão

Vida sem utopia
Noite sem pesadelo
Me levem daqui.
Só quero ver as pérolas mergulhando nas águas escuras.