domingo, 22 de março de 2015

O destino de um inocente sem culpa (Spotless mind)

Se sumo, desapareço
em pétalas despedaçadas
da rosa que você me deu,
do sumo doce da fruta que fez morada em sua boca.
Me desfaço em dois atos.
Se antes pelo excesso,
agora pela falta
de foco, de perspectiva,
enquadramento.
É tão pouco o que separa
a loucura irradiada
do acordo estranho acerca do que seria a sanidade
ou do "ser louco da loucura do outro".
É justamente neste pouco que me perco
em sumo, em essência,
da vida.
Se sumo da sua lembrança,
me destruo, me desfaço
em pedaços
dos cacos que você recolheu.

Fotografia by Gabrielle Torres

quinta-feira, 12 de março de 2015

Líquido

                                  (para D.B.P.)
Eu ainda vejo a porta aberta
E os olhos muito presos
Todas aquelas fechaduras e correntes seriam fetichistas se não prendessem seus próprios pés
São tantas histórias que você não pode contar
Eu vi quando você olhou pela fresta
E vi você se derretendo em delírios cinzentos
Você vê os corpos se contorcendo, se entrelaçando, se amando de uma maneira descontrolada, pairando entre a raiva e o asco, entre a demanda e a degradação
Eu vejo a sua cobiça por eles, seu anseio por intensidade e pelas coisas levemente árduas da vida
Você quer ser machucada e dizimada pelo gozo disforme dos pares
Você quer chorar por aquilo que deseja, pelas impossibilidades impostas pelas invariáveis
pela falta, pela falha, pelo oco e pelo outro
pelo pouco e pelo novo e pelo mesmo
ainda que esta seja, em suma e em avesso, a sua essência.

Bolor

Às vezes eu fico horas pensando no sentido de certas coisas e a única conclusão a que chego é que elas não tem mesmo sentido algum. Então eu percebo que uma quantidade desconcertante de coisas se caracteriza dessa forma e essa total falta de significados se torna de tal modo sufocante, que parece impossível ter ficado tanto tempo presa à mecanicidade, à norma, às obrigações e insensível à beleza das coisas verdadeiras. De repente, eis que do caos ordenado surgem belezas inspiradoras, meios de elevação, novos moldes de matéria, matéria que não é matéria, coisas que simplesmente são. E então o sentido aparece nas velhas coisas, naquilo que ainda importa e se faz essencial exatamente pelo fato de existir.

De dois

Com as bocas que te beijo, tento sentir seu gosto doce, além do ácido, além da vergonha e do desejo, imprimo em você uma marca minha, vejo o seu olho que mais ninguém vê. Aprecio as maçãs do rosto, as maçãs do corpo, dos relevos das dúvidas, os atos de culpa, a envergadura abaixo do quadril, o movimento da cintura, a textura dos seus lábios - velados. Os encontros de pernas, as delícias no fim delas, a vontade que te curva, o uivo baixo da garganta que te trai, o teu cheiro me distrai, me coloque pra dormir debaixo da chuva branca. Impudico tato definido pelos a(pelos) femininos. Curvas franqueadas pelo sol. Pode banhar como quiser os totens sob a tua lua, pois é neles que me deito quando não há mais o que esperar. Firme estrutura de penúria, não tente me castigar. Vou fazer minha prece a seu respeito, incluir-te nos sonhos de desrespeito e deixar um rastro de saliva pelo seu meio para quando você acordar.

*texto escrito em conjunto com R.V.V.

Translação

Deste delírio particular em que me meto toda vez
Que a Urgência vem me visitar
Com seus olhos e bocas a me engolir
Devagar
Provocando o que há de pior em mim
Me apertando a garganta e me exigindo presentes resultados
E eu presa em um passado sem perspectivas.
De tudo, só alma
É funil este campo de batalha que travo comigo mesma
Me desarmo em desafio,
Quase explodindo e transbordando.
Entorno líquidos embriagáveis
Em torno da sua ausência.
É só aflição, inquietude e gritaria.
Desmancha este nó no peito com o tempo,
É entre mim e o espelho.
É ócio, serpente se corroendo por dentro.
A busca por algo ainda não descoberto
Por isso e, em essência,
Louca esperança de dias melhores.
Que o Tropeço e a Urgência impulsionem
Para agradáveis qualidades
De quem se sujeita à loucura invariável
De se desenvolver em pontes com outrem
Pontes de amargo desengano
Ou de marcante passagem
Cicatriz estranha e doce
Do seu sorriso.


sexta-feira, 6 de março de 2015

Cheiro de planta morta

Permeia-me o corpo com pequenos pecados
E eu lustro a âncora que te puxa para baixo
Noites sem desejo
Sonhos aspirantes
A sensação de sufocamento no meio da confusão é sempre familiar
Você me prendeu com seus braços
Me colocou nos arredores dos seus pensamentos luxuriosos
Disse que era sujo
E que assim era melhor
Eu te recitei versinhos curtos
Para você não se desesperar
Peguei sua mão
Te levei a um lugar diferente
Pedi para você esperar
Nós nos perdemos no meio do caminho
Esqueci você tentando me encontrar
Você me perdeu porque não conseguiu esperar
Você fez certo, porque não há certeza na espera
E a espera não é o benefício da dúvida
É a certeza de que o sim não é absoluto
É o pedido de desencontro
A porta que leva à ausência
A ponte que leva à distância
O tempo que não vale nada
A imagem que você não permite
A proximidade que você impõe
A equidade que se esvai
A minha insegurança, solidão, incapacidade de completar uma metade
A impossibilidade de viver para ser dois, um único número
A sensação de estar caindo
A sensação de estar ouvindo vozes
A presença de uma intromissão
De uma invasão
De um defeito
De uma infrequência
O extravio dos nossos corpos
Na subjetividade que nos enlaça
Vai além disso
Somos um elo torto
Não nos ligamos a nada
Por nada, em nada
Não nos ligamos
E perpetuamos a falta de compromisso
A facilidade da nossa revolta
A tristeza dos nossos dias
As falhas da nossa existência
A pobreza dos nossos espíritos
A essência que nos une
Disso não sobra nada
Não se sobra o que sempre foi resto, inverso
Incesto
Com a sua mãe deslocada
O cuidado que ela não fez, eu não fiz
Eu não dou
Eu não sou
Nós não somos
E por falta demais,
De mais,
Muito mais,
Ficamos assim.