domingo, 20 de dezembro de 2015

Fiat voluntas tua

Seca a glória amortecida
O que te parecia amor
Hoje me é doença
Como poderia não haver terror
em tanta dependência?

Queria te completar
Mas como poderia eu, parte dividida
Única matize esquecida
Fazer figura fina
na luminosidade do vitral?

Como poderia eu
Várzea sem nutriente
Rio sem correnteza
Terra sem nível
Fazer margem para sol poente?

Seria eu, teoria sem prática
Noite sem luz
Escape sem direção
capaz de achar interseção
entre a bestialidade dos seus sentidos
e a porosidade do que te mata?

Ainda que nula
estaria a par
de tamanha contenção
sendo vista
e sendo chão
Poderia eu, mesmo te odiando, te amar?

Poderia eu, mente que surta
Veio que apodrece
Corpo instável
Doce não palatável
Ser em mim barco
E fazer uma casa no mar?

Se meu mal, paz
Se meu dentro, caos
Se meu eu, nau
Você,porto de pedra
Ponhamos corda, muro e seta
A vela não mais desgovernará

Apenas circunstância
Apenas acaso
Corredor sem porta
Caco com ponta, estilhaço
De mim que diz querer apenas um pedaço
Não percebe que enquanto usa, sabota?

Sem eixo, desconhece as bordas
Alisa o vinco que se forma
Afina a lima que me fere
Alcança a serra que me corta
E eu, toda cega
Desmerecida
Sem destreza e maestria
Permaneço descascando a ferida

e ainda devota

Conseguiria eu, crime inafiançável
Praga mal dita
Cola sem validade
Gosma que desliza
Convicção desvalida, ainda poderia
Eu, que no final de seu juízo, ré
Achar praia para minha maré?

sábado, 12 de dezembro de 2015

Deserto

Para me proteger da seca de sentido
Construí pra mim um poço de vazios
Joguei nele algumas esperanças
E pedi de olhos fechados que certas certezas fossem embora
Fiquei olhando para os lados e para cima
Para dentro, mas a viagem não tem fim
E quando passa a euforia, é só tormento
Como barquinhos que se molham e desmancham
Ao serem levados desamparados com a correnteza que não tem finalidade
Tentando não ser igual
Mas também não mendigar diferença
Produzi detalhes que não tem sentido e também não são notados
Papéis rasgados e queimados
Intenções sinceras e argumentos fracos
Nada escapará à desambiguação
À insignificância
À inotoriedade
Somos só crianças em envelhecimento
Corpos vivos mas mentes em esquecimento
Nós somos só belas tentativas
E na maioria das vezes, falhas
Somos choro à noite
Somos a vontade de desaparecer
Eventualmente
e sempre
a vontade de morrer
Porque nos dizem que vivemos para a felicidade
Mas vivemos para superar a desesperança
Para fazer personagens
E comparecer a peças diárias
Onde o distraimento do vazio que se sente é a única recompensa
Vamos todos os dias
Alheios à própria especificidade
Ilesos
Porcos pro abate
Fazer poças de lucro
E depois tentar se afogar nelas
Que bela sensação de torpor
Mas não há alento
A dor que sinto vem de dentro
É inexorável
Irremovível
Intransponível
Sem ela não há nada
E com ela no corpo, por aí, fazemos tudo
Não se sabe dela
Não se cabe nela
Como um sórdido mistério
Fogo que arde e não se vê
Mas ferida que dói e se sente
Dói dos olhos até os dentes
É fonte da qual se vem
Forte através do qual se defende
Cova na qual se deita
Para esperar o beijo final
O abraço de apaziguamento
Com sorriso nos lábios
O veneno
A derradeira paz
O silêncio
A água que jaz
no deserto.

Nebula

Caos engarrafado
Caco
Estilhaço
Pedaço
Pó em rotação
Poeira de outra era
Mimética
Métrica
Beleza
Profusão
Muito no mínimo
Energia organizada
Matéria enlouquecida
Esquecida
Que contamina e desliza
Destroi e cria
Morte, vida, concretiza
Possibilidades
Nos ades de luz
Verso antitético
Limbo paralelo
Universo anacrônico
Hidrogênio, arsênio, polônio
Universo pródigo
O inapreensível
O impossível

Nóz
Grão
Imagem
Presença
Desagregação
Imensidão
Ilusão?
Imersão
Comunhão
Íntimo
Infinito

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Ode à desagregação III

Vai
Antes que eu vá no seu lugar
Quero cortejar a sua amada
E fazer dela o meu punhal

Tenta
Fazer de mim trapo
Não conseguirá
Eu vou cortar a sua garganta enquanto você dorme
Quero sentir o seu último respiro
O agonizar do seu vivido
Quero a sua angústia bem de perto

Venta
Na minha alma
Se sou sua é por espírito
Por outras vias é desperdício
Somos límpidos
Amor, somos mar

Vem comigo
Antes que eu te esqueça
Não quero pedir detalhes nem desculpas
Pareço até a sua culpa
Mas vou resistir
E serei, pelo menos, o seu mal-estar

Proteja-me
Da minha própria ignorância
Da minha comiseração
Da minha insignificância
Da minha tristeza
Da loucura
Da secura
Da inquietação
Esteja comigo
Na minha dúvida
Na minha sorte
Na morte
E na perdição
Amor,
Amém.

A pele que habito

A única coisa que pediram a ela é que não fosse uma pessoa vulgar
No entanto a única coisa que ela queria era estar nua em cada dor
Agindo como se não tivesse pele
Sentindo o tempo todo e a contento para o além da conta
Sentia-se suja de esquecimento
E descrita em poucos verbos
Entristecida pela ousadia inválida de cada dia
Poderia dizer que já morria
Nem podia mais colidir-se
Não havia espaço para tanta angústia
Tentou cavar uma cova dentro de si
Para soterrar as amarguras e os pudores
Mas na terra encontrou areia movediça
Afundou-se na própria desgraça
No lamaçal empoeirado
Não sabia mais se era dia ou era noite
Sentia as pedras nos pés descalços
Tentava dançar uma música sua
Mas tinha perdido o compasso
Tentava vestir roupa que não fosse imunda
mas já não sabia dizer das cores
Queria alma que fosse sua
Mas não vivia mais de amores
Dizia alto que era pra espantar o azar
O nome de todos os seus fantasmas
Pedia em silêncio misericórdia
Da sua discórdia
Da vontade de servir
À nenhuma verdade
Pedia em desalento
Sustento
Do seu fardo
Carga
Cruz
Cruzada.

sábado, 5 de dezembro de 2015

Pilar

Amor raro,
Terra que avisto,
Firme desembarque.
Como das Índias,
Rara especiaria
Cravo-e-canela.
Doce amargo.
Seus olhos,
Olhos que quero,
Olhos que cercam,
Afirmam,
Envolvem.
Olhos que fogem
Ou procuram saída
Para afirmar-se no quase,
Provável,
Talvez.
Afrouxa as amarras,
Corre pra longe,
Olhando de Jupiter.
Instinto fulgaz
Procurando os opostos,
Revezes,
Contraditórios.
Você como ponto,
Contrapondo-se
Em paralelo,
Aos avessos,
Eu espero.
Por você,
Uma prece:
Que longínquo seja
O meu sorisso
Ao anunciar-se
A melhor presença,
Brinda minh'alma
À sua, amor
Em essência.