domingo, 19 de abril de 2015

Cadeado

Fotografia by Gabrielle Torres
Obrigada por deixar trancado aquele andar desritmado que soprava bravuras através da janela. Aquilo me dava um medo danado da vontade que despertava, do impulso empolgante de me jogar na travessia. Aquilo me dava asas para imaginar como seria soltar o desejo em alto mar e esperar até naufragar no labirinto de possibilidades. Aquilo provocava a inquietude característica do escapismo indômito, quase transbordado em mim.
Obrigada por me deixar em casa e me ceder a bússola, me iluminar os caminhos, me deixar as pegadas. Aquilo me poupou trabalho com a flexibilidade infinita do vento. Aquilo me deu as respostas para as perguntas que me impulsionariam para um depois ainda variável. Aquilo me ditou uma ordem tão despreocupante, que refletir sobre o meu reflexo se tornou evitável.
Obrigada por fazer da minha vida um lugar mais confortável, menos disperso, mais estreito e distante. Mais quieto. Isso me deixou menos confusa, menos desfocada. Isso diminuiu o atrevimento de um descobrimento autônomo e responsável, diminuiu a fúria da liberdade, acalmou e limitou o coração.
Obrigada por deixar ser saudade o que seria experimentação vibrante e ilimitada. Isso desinstituiu reis e rainhas ainda não apossados, decretou fins ainda nem começados, expulsou ideias dançantes de pódios a serem conquistados.
Obrigada por me obrigar a não questionar tanto e a aceitar, quase sorridente, tudo o que seria imposto, cobrado, pago. Obrigada por exigir a sua taxa de manutenção a respeito da posse das possibilidades.
Obrigada por trancar tudo isso e não deixar fugir. Eu seria engolida por todos esses leões travestidos de talvez. Obrigada por enjaular toda essa vontade e essência. Obrigada por quase abafar todos esses gritos provenientes das bravuras sopradas através da janela. Obrigada por quase me deixar satisfeita e quase me fazer crer que não há nada além disso.


Obrigada. 

Interseção

E nestes tempos de dissimulação progressiva das faces,
nesta dizimação desigual de pares.
E nestes (des)encontros munidos de medos e armas,
máscaras e verdades forjadas,
o que tenho em mãos é o gosto bom
que fica quando encontro seu eu,
com o qual o diálogo não se faz necessário.
Nesse momento, nada tão melhor e grandioso.
Não há histórias para contar, não há personagens que enfeitar.
Nessa sinestesia, me faço completa e arremedo as suas faltas.
Perpetuamos o que escapará de nós logo adiante
ou deixamos de eternizar aquilo que encerra em si mesmo.
Sempre me escapa esse seu toque macio e colorido,
sonoro e forte
com o nascer do sol
e tudo se desfaz como fumaça na madrugada.
Você é uma lembrança vívida que ás vezes eu ponho em prática.
É uma invenção sem dono, tamanha sua perfeição em descompassos.

Para você, com amor, sem distância

Eu gostaria de escrever uma mensagem pra você. Só que na maioria do tempo eu não sei o que dizer. Nem mesmo sei onde os pensamentos estão indo. Gostaria de escrever coisas bonitas, fazer metáforas interessantes, te impressionar, mas não acho que isso não vai ser possível. Porque não sei falar coisas bonitas, planejadas, sonetadas, rimadas. O que digo vem de dentro. Surto do inconsciente, sopro de sinceridade, arrasto de afetos. Parece um pouco de desleixo e loucura às vezes. Versos muito soltos, coisas muito agressivas, impulsivas, violentas. Mas sou só eu tentando me expressar, tentando ser compreensível, não soar como desvairada, dizer o que gostaria de dizer. Estou tentando lhe dar um pouco da minha loucura, da confusão, da vontade, da boa violência, da minha inexatidão. Eu que penso saber onde vou, mas não sei. Você sabe mais. É só sopro. Só vontade. Tentativa de tomar formas. De sair do corpo. Da cabeça. Pela ponta dos dedos. Necessidade de corporificar, fazer real, concreto, presente. Estar aqui. Estar aí. Na esperança de que eu esteja em você. Como você está em mim. Suporte. Apoio. Contenção. Preenchimento. Menos vazio. Menos descarte. Menos tristeza. Mais em nós. Mais tempo. Mais profundo. Mais de nós. Avessos e manejos. Fúrias e desejos. Elos. Espaços. Pedaços. Mas não tem problema. Mesmo que com partes diferentes, com fugas, desfoques, estrofes, apelos e ensejos. Nós ainda estaremos em nós. Trocadas, misturadas, indissociáveis, mutáveis, movendo-nos. Correndo. Em ruas diferentes, com outras determinações, mas ainda dividindo o peso do caminho. Brindando a falta de direção.

*Para D.B.P.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Quimera

Pois é quando bate
Aquele ventinho gostoso
Frio da relva
Fogo na panela
Meia lua no dia
Azul anil
O véu do céu.
Vem
Dança comigo?

sábado, 4 de abril de 2015

Desamor

Tenho amor para amar por muitos
Amor muito sólido, amor de verdade
Amor que desdenha, para saber se resiste
Amo que mente para não magoar
Amor sem virtude que é pra não magoar
Cantiga de roda, menino que chora
Amor sem história, te penso em perdão.

Por entre amores frustrados
Aprendi o amor sem pecados
Isolando o Xamor de seus problemas
Tecendo a tristeza com a linha do tempo
Mesclando os pedaços
Testando certos métodos
Amor sem palavras, todo em essência
Amor descolado da página
Rasgado no vento
Escrito na folha de trás do caderno, no meu verso
Que é pra ver se dói menos.

Amo fatigante e pesado
Rasga-me o peito em rugidos altos
Amontoa-me num canto
Pede por liberdade
Rasga-me o peito em coragem selvagem
Pede para não desamar.

Amor deslocado, mudado
Não te reconheço mais
Ainda que o vaso em pedaços
Nunca vá se colar para mais uma vez ser ornamento
Cola-se pelo amor que toma-lhe o formato
Arremedo fora de hora, desespero mal planejado
Cola-se os pedaços errados
Deixa-se as marcas das mãos
Mostra aos outros para ver se está bom

Passa a noite acordado
Ouvindo os barulhos (meus)
Colorindo os cacos
Alcoolizando os pensamentos
Deixando de ser, tomando distância, pedindo desculpa
Rezando para o santo, fazendo promessa, barganhando milagres
Que não tem.

Amor de romance
Prosa na janela
O balanço de sua saia me joga
Pra lá das montanhas
Pra cá de mim mesmo
Vendo o rubor que nos assola
Nossos ricos detalhes
Ponho-lhe os préstimos de amor
Que é pra você não sair por aí sozinha
No sopro de dentro
Sentindo frio, sentindo silêncio
Que é pra você saber
Que mesmo nesse desconcerto cinzento
Há (des)amor.