quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Ode à desagregação II

Depois de velha fiquei covarde
Depois de santa virei demônio
Depois de tentar e não conseguir
cheguei num ponto em que não desejo mais nada
Depois de recusar tudo comecei a me alimentar de migalhas
Depois de escolher o certo comecei a fazer errado
Depois de tanto me isolar
comecei a odiar a solidão
Ainda que por lugares conhecidos
Corpos sólidos
Sinto o chão desaparecer todos os dias
Sinto a voz sumir
A vontade ir e não voltar
Sinto o corpo tremer
O pensamento desalinhar
Antes eu tão certa que queria o céu
fui me prender a vários pedaços sem forma
Coisas terrestres
Depois de desfazer fui te amar
Fui tentar sentir dor para sentir vida
Consegui
À noite espero você em sonhos
Visto plumas e me perfumo
Deleito o corpo em doces canduras
Ignoro o sutil ardor da carne
Gosto de sangue na boca
Gosto de fel na vida
Grito extremo, triste e rouco
Soa como um apelo desesperado
Espera ridícula
Faz de mim nada
Mais uma vez me transforma em névoa
Restos
Leva de mim o melhor
Meu sabor, minha alegria
Até o brilho do meu cabelo
Desprezo
Entristece a minha feição
Enrubesce o meu orgulho
Tira de mim o ar de desafio
A certeza, a despreocupação
Coloca o sentido em frangalhos
Corta a pele onde ela é mais fina
Tira a luz dos meus dias
Finda a esperança
Desavença, cobrança
Alcança o protótipo primeiro
Não resolve
Limita a sensação de prazer
Anula em mim o anseio por pecado
Fatiga a minha alma, desanda a reza, rompe o envólucro
Persevero em não cuidar de você, em não te aliar
Em não te colocar entre as esperas minhas
Entre as ideias que tenho
Entre as dores que me partem
À guisa de fazer verdade
Suspeito que nem sou mais
Eu que antes água agora sou matéria indistinta
Segurando nas bordas
Tentando ter ar, tentando me afogar
Eu que antes me calava não mais sorrio
Pareço uma injúria
Uma divisão
Uma aberração
Pela conjugação de torpes incoerências
Eu que antes forma
Agora desapareço
Antes minha
Antes fúria
Agora enlouqueço
À mim não mais detalhes
Pedidos, altares, alardes
Leva pra você um pouco de frescor
Não tenho mais para onde ir dentro de mim
Eu que antes medo
Agora nem me anuncio
Agora sou só triste
Agora não mais me presto
Não mais me quero
Não mais me basto
Eu que depois de velha ganhei tato
Fiquei frágil
Uso palavras que não me tocam
Pra falar um pouco dessa escuridão.

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